Políticas de Memória e Artesanato

Memória

AUTORIA: Ari Rodrigues

O Projeto Estruturação do Sistema de Gestão do Artesanato Brasileiro: Diagnóstico e Planejamento Estratégico ofertou o primeiro curso de extensão no formato remoto, denominado Políticas Públicas e Desenvolvimento do Artesanato. A capacitação compõe o diagnóstico nacional da atividade e fundamenta-se no levantamento participativo dos dados, na troca de saberes entre os sujeitos protagonistas do setor e no fortalecimento da rede com foco na implementação de políticas públicas.

Inicialmente, tratou-se da Base Conceitual, das Políticas Públicas e avaliação de resultados e do Marco Jurídico do Artesanato. Em seguida, o quarto módulo da formação retratou a relevância da memória na atividade artesanal e foi ministrado por Carlos Henrique Rezende Falci, professor Associado I da Universidade Federal de Minas Gerais, e Maria Alice Braga, formada em Ciências Econômicas pela PUC Minas e Artes Plásticas pela UFMG. A ementa proposta foi:

Memória e identidade. Memória social e memória coletiva. Lembrança, esquecimento e políticas de memória, pois falta algo sobre memória e artesanato, mais especificamente.

Conceito de Memória

No dia a dia, a palavra memória é associada à capacidade de os seres vivos obter, armazenar e recordar informações. Originada do latim memorĭa, trata-se de um processo psicológico que forma a identidade pessoal de cada indivíduo, norteia sua trajetória de vida e constrói um status de coletividade, como é o caso da manutenção de técnicas artesanais ao longo dos séculos.

Neste sentido, a memória é frequentemente julgada como um estado estático do passado, restrita à recordação de situações que aconteceram e permaneceram lá. Entretanto, sob uma óptica atenta, ela ostenta um caráter de dinamismo e interdependência com as outras dimensões temporais, pois durante o momento presente, alude-se ao passado e volta-se à modelagem do futuro com as experiências acumuladas.

Como não há uma definição única para o vocábulo, inúmeros pesquisadores têm perspectivas singulares a seu respeito. Segundo o historiador Henry Rousso, “a memória é uma reconstrução psíquica e intelectual que acarreta de fato uma representação seletiva do passado, um passado que nunca é aquele do indivíduo somente, mas de um indivíduo inserido num contexto familiar, social nacional. Portanto, toda a memória é, por definição, coletiva”. Enquanto para o antropólogo Jöel Candau, “sem memória o sujeito esvazia, vive unicamente o momento presente,  perde suas capacidades conceituais e cognitivas. Sua identidade desaparece”. Logo, repertório de vivências coletivas e sociais, memória é identidade. 

Para Jan Assmann, pesquisador em egiptologia, dois tipos de memória se destacam: a comunicativa — transmissão oral de recordações no cotidiano — e a cultural — legado de representações de um povo em um dado tempo histórico, através de textos, monumentos, rituais, festividades, objetos e demais atributos. Esta última está inerentemente associada ao artesanato. 

A memória e o artesanato

Por ser um ofício referenciado ao período neolítico (cerca de 6.000 a. C) — em um momento de intensas modificações no estilo de vida humana do nomadismo ao sedentarismo —, expressiva parcela das tipologias artesanais realizadas na atualidade são fruto da transmissão dos fazeres entre gerações com a adição de conhecimentos de diversos povos ao longo do tempo. No caso brasileiro, em razão do modelo de colonização adotado, o artesanato construiu-se a partir das memórias dos indígenas — os primeiros artesãos —, africanos escravizados, imigrantes europeus e asiáticos.

Se nos tempos remotos, o artesanato era utilizado para funções básicas de sobrevivência, posteriormente, a atividade foi marcante para a consolidação da cultura de múltiplos povos. Tal aspecto é verificado na fabricação de algumas peças que datam tempos remotos. Houve adaptações para os contextos locais e históricos, é verdade, porém a essência se mantém. É o caso da cerâmica e do trançado de fibras, que são reconhecidas como as técnicas mais antigas de produção artesanal, cujas definições podem ser conferidas no ANEXO II – ROL DE TÉCNICAS ARTESANAIS  da Base Conceitual (Portaria 1.007/2018).

Um exemplo da busca por memórias é o projeto “Lugares Imaginários de Memória”, executado pelo grupo de pesquisa Figuras da Memória, liderado pelo professor Carlos Henrique Rezende Falci (EBA/UFMG), no qual buscou-se recuperar a memória de moradores da cidade histórica de Tiradentes/MG, tanto a partir de registros imateriais, como relatos e lembranças, quanto registros físicos, sejam fotografias, vídeos, áudios e pinturas. 

Com o questionamento de “como as narrativas dos moradores da cidade podem criar lugares de memória em Tiradentes?”, o grupo coletou, entre outros elementos, o depoimento de Gilson Costa, que retratou a transmissão de saberes da técnica de sabão de cinza pelos seus antepassados e um esforço de preservar a prática:

“Eu faço sabão de cinza, sem soda. E leva tempo até ele ficar bom. É gordura de porco e água de cinza, só. Lá vai endurecendo, já tem dois meses. Leva dois ou mais. Vai endurecendo, parece um doce. Cheira pra você vê, tem cheiro de sabão. Mas nada de soda, só água de cinza. Pega cinza, coloca numa lata, prensa ela, coloca água, faz um buraco, coloca um feltro pra não passar a cinza, derrete a gordura. Cada dia você tem que colocar um pouco d’água e ir mexendo. Os antigos faziam, dava banho em criança… Aí eu mantenho essa tradição.” 

Sabão de cinzas

Processo de confecção de sabão de cinza por Gilson Costa. Reprodução: Lugares Imaginários de Memória/Instagram.

Cinco características de memória

Conforme o antropólogo Joël Candau, no estudo “A memória e o princípio da perda”, algumas ideias equivocadas interferem nas representações de senso comum da memória humana. “Segundo  elas,  haveria a)  uma  única  memória, b) definida como uma faculdade cognitiva estritamente individual, c) que  teria  como  função  a  lembrança  e  que,  por  essa  razão, d)  seria  fadada  a representar  o  passado, e)  cujos  vestígios  teriam  sido  registrados  de  maneira deliberada  e  explícita”. (CANDAU). 

Com base em estudos de outros pesquisadores, Candau buscou desestruturar essas concepções que são “redutoras da realidade dos processos memoriais”, segundo ele. Assim, para o autor, as memórias têm cinco características fundamentais:

1) os seres humanos são dotados de um mosaico de memórias; 

2) elas são sempre sociais; 

3) sua função é, ao mesmo tempo, a lembrança ou o reconhecimento do passado e o esquecimento deste; 

4) essa função está, antes de tudo, a serviço do futuro; 

5) elas são amplamente o fruto de aquisições não-conscientes.

1) Somos dotados de um mosaico de memórias

Conforme Georges Chapouthier, o homem é um ser em mosaico em razão dos múltiplos elementos autônomos que se interligam e permitem o funcionamento do organismo. De modo análogo, a memória também é uma combinação de fatores, pois há memória dos rostos, espacial, das formas, motora, das regras abstratas, entre outras. 

Em adição, para Joël Candau, tem-se a subdivisão de memória explícita e implícita. No primeiro caso, é composta de uma memória episódica (acontecimentos vividos por um indivíduo) e semântica (fatos conhecidos pelo indivíduo). Ao passo que a segunda manifesta-se na memória procedural (habilidades motoras), memória dos condicionamentos clássicos e de uma memória das aprendizagens não-associativas  (hábitos e sensibilização).

Sob o viés que as peças individuais do mosaico liberam histórias distintas e geram novas perspectivas, Besses & Escolar propõem três acepções possíveis da noção de políticas de memória: as relações de força e processos sociais na comunidade, as estratégias políticas que reorganizam o passado (programas, planos, projetos) e, por fim, as perspectivas críticas sobre este pretérito (academia, políticos, associações).

“Em toda sociedade, cada indivíduo participa de uma política de memória porque ele carrega e colore certas representações do passado do grupo ao qual pertence. Também é por causa dessa  marca  individual  no  “fluxo  memorial”  que  nunca  há,  propriamente dizendo,  construção  de uma memória  coletiva,  mas  de  várias” (SHAHZAD).

2) Memória humana é uma memória social

A memória é considerada social por estar submetida a efeitos sociais como os poderes políticos, as associações, as comunidades e os partidos. González & Ferreira enumeram circunstâncias fundamentais para findar o silêncio da memória e viabilizar os depoimentos: “as testemunhas devem se sentir capazes de falar, os membros da sociedade devem estar  dispostos  a  escutar,  o  poder  político  deve  tolerar  um  certo  tipo  de narrativa memorial, todos os protagonistas devem aceitar um certo número de acordos”. 

“A memória é um instrumento político que pode ser utilizado para promover a escuta das diferenças; ou regimes autoritários” (CANDAU).

3) Memória é uma combinação de lembrança e esquecimento

Diante de afirmações de que algumas memórias não podem ser esquecidas, Joël Candau orienta seu pensamento para uma concepção de que a memória é “limitada, seletiva, esquecedora e declinante”. Para ele, a incapacidade de recobrar todo o passado auxilia na vivência do presente, pois este montante perturbaria a mente com informações apresentadas, mas não representadas, isto é, haveria ausência de interpretações.

Em relação ao artesanato, as essências de muitas técnicas continuam preservadas, ainda sim, alguns detalhes se perderam com o passar do tempo e outros foram inseridos em certos contextos históricos e locais. O conjunto lembrança-esquecimento figura-se, portanto, como uma oportunidade para a criatividade. Um exemplo é a confecção de cestarias que ganhou “novos fazeres” e se incorporou a várias peças, como cadeiras, redes e vasos, conquistando espaço na decoração, em detrimento à função inicial de armazenar alimentos e carregar objetos.

“A memória também é esquecível. Ela  é  o  conjunto  dos  vestígios descontínuos  do  passado  que  nós  reconfiguramos  no  presente  para  nos projetarmos   em   direção   ao   futuro,   e   essa   descontinuidade   implica   o esquecimento” (CANDAU).

4) A memória fala do passado e prepara o futuro

Para Marc Bloch, “o  estudo  do  passado,  que  explica  o  presente permite  apenas  conceber  sobre  os  destinos  futuros  das  sociedades  humanas, não soluções certeiras, mas pelo menos algumas opiniões verossímeis”. Os pensamentos do historiador francês partem do princípio que a memória tem como atribuição reciclar as experiências do passado e rearranjar seus elementos para então guiar o futuro.

5) A memória é fruto de aprendizagens não-conscientes

Por fim, Joël Candau encerra seu estudo: “pelo fato de que as expressões  mais  manifestas da suposta  memória coletiva se encontram no espaço público  (museus  da  memória,  monumentos, manifestações de rua, colóquios, etc.), temos tendência em ver nela o resultado de  processos  inteiramente  conscientes,  explícitos  e  deliberados  e,  da mesma forma, corremos o risco  de ocultar tudo o que ela deve a  mecanismos psicológicos muitas vezes muito íntimos e às vezes estranhos à  consciência clara”.

Além disto, para o autor, “é  preciso  então  admitir  que,  muitas vezes, nós não sabemos o que sabemos, e é sempre de maneira fugaz que, num contexto   inesperado, nossos automatismos,  nossas  rotinas cognitivas,  nossos hábitos,  nossas  disposições  incorporadas  vêm  aflorar  na consciência  para,  muito  rapidamente,  desaparecer  de  novo,  nessa terra incógnita que  é  a  protomemória” (uma memória ‘imperceptível’, que ocorre sem tomada de consciência).

Museus sobre artesanato

Um símbolo fundamental para a preservação da memória é o museu. Ao longo do Brasil, alguns espaços permanecem como preservadores de elementos culturais do artesanato:

Museu Casa do Artista Popular Popular Janete Costa

Conforme informações do Governo da Paraíba, é localizado na Praça da Independência e abriga mais de 1,5 mil peças do artesanato paraibano, representando mais de 5 mil profissionais do segmento.

Museu Casa do Artista Popular Janete Costa

Museu Casa do Artista Popular Janete Costa em João Pessoa, PB. Reprodução: Governo da Paraíba/Foto de André Lúcio.

Museu de Artes e Ofícios

O espaço conta a história de dezenas de atividades profissionais que deram origem à indústria de transformação em Minas Gerais. São milhares de peças originais dos séculos XVIII ao XX, que representam os antigos ofícios em setores tradicionais como: mineração, lapidação e ourivesaria, alimentício, tecelagem, energia e curtumes (SESI).

Museu de Artes e Ofícios

Museu de Artes e Ofícios em Belo Horizonte, MG. Reprodução: Museu de Artes e Ofícios/ Twitter.

Museu do Artesanato de Sergipe

No local são expostos trabalhos de vários pontos do estado, com suas características: trabalhos em barro, palhas, sementes, entalhes em madeira, peças de origens indígenas e caboclas, bem assim, exposição de instrumentos de trabalhos de artesãos, conforme aponta o Encontre Aracaju.

Museu do Artesanato em Aracaju

Museu do Artesanato em Aracaju, SE. Reprodução: No mundo da Paula.

Portanto, o Projeto Estruturação do Sistema de Gestão do Artesanato Brasileiro: Diagnóstico e Planejamento Estratégico, que é uma iniciativa do Programa do Artesanato Brasileiro (PAB), executada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), será instrumentado para a compreensão do papel que o artesanato desempenha nas culturas locais em que ele está inserido, atrelado aos aspectos socioeconômicos dos atores que o compõem e da comunidade em seu entorno. 

Por meio  de uma  abordagem do artesanato em toda a complexidade de sujeitos, dinâmicas, relações e processos que o constituem, serão analisadas as políticas públicas existentes na busca por aperfeiçoamentos e haverá o mapeamento de outras medidas necessárias, entre elas, as relacionadas à memória, aspecto fundamental para a preservação de técnicas tradicionais de produção artesanal, , e como a memória relativa aos ofícios podem melhorar a qualidade de vida das comunidades e criar oportunidades de desenvolvimento. Há muito para encontrar e resguardar neste país continental!

As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e de inteira responsabilidade do autor, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista da UFMG, do Ministério da Economia e do Programa do Artesanato Brasileiro.

Referências

Apresentação de Carlos Henrique Rezende Falci e Maria Alice Braga.

AUGOT, Paula. O que Fazer em Aracaju e o que Visitar. Disponível em: <https://nomundodapaula.com/o-que-fazer-em-aracaju-e-o-que-visitar/>.

CANDAU, Joël. A memória e o princípio de perda. Disponível em: <https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/Dialogos/article/view/36074/18680>.

DOURADO, Flávia. Memória cultural: o vínculo entre passado, presente e futuro. Disponível em: <http://www.iea.usp.br/noticias/memoria-cultural>.

ENCONTRA ARACAJU. Museu do Artesanato de Sergipe Aracaju. Disponível em:<https://www.encontraaracaju.com.br/sobre/museu-do-artesanato-de-sergipe-aracaju/>. 

FIORUCCI, Rodolfo. História oral, memória, história. Disponível em: <https://ojs.ufgd.edu.br/index.php/historiaemreflexao/article/viewFile/952/587>.

GARCIA, Bruna da Silva. MEMÓRIA E HISTÓRIA: UMA DISCUSSÃO TEÓRICA. Disponível em: <http://www.cih.uem.br/anais/2015/trabalhos/1508.pdf>.

GOVERNO DA PARAÍBA. Dia do Artesão: Governo do Estado conclui obra do Museu Casa do Artista Popular Janete Costa. Disponível em: <https://www7.fiemg.com.br/sesi/sesi-cultura-mg/pagina/museu-de-artes-e-oficios-2>.

JÚNIOR, Carlos Alberto Mourão; FARIA, Nicole Costa. Memória. Psicologia: Reflexão e Crítica, v. 28, n. 4, p. 780–788, 1 dez. 2015. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-79722015000400017>.

SESI. SESI Museu de Artes e Ofícios. Disponível em: <https://www7.fiemg.com.br/sesi/sesi-cultura-mg/pagina/museu-de-artes-e-oficios-2>.

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS. Projeto “Lugares imaginários” revela memórias dos moradores de Tiradentes. Disponível em: <https://ufmg.br/comunicacao/noticias/lugares-imaginarios-em-tiradentes-devolve-aos-moradores-memorias-coletadas-sobre-a-cidade>.

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