AUTORIA: Ari Rodrigues
O Programa Artesanato Brasileiro (PAB) define artesanato como a produção resultante da transformação de matéria-prima, com predominância manual, por indivíduo que detenha o domínio integral de uma ou mais técnicas, aliando criatividade, habilidade e valor cultural (possui valor simbólico e identidade cultural), podendo no processo de sua atividade ocorrer o auxílio limitado de máquinas, ferramentas, artefatos e utensílios.
O início desse ofício remete ao período neolítico, cerca de 6.000 a. C., no momento em que os grupos humanos fixaram suas moradias e introduziram a prática da agricultura, além de passarem a polir pedras, fabricar cerâmicas, tecer fibras animais e vegetais e retratar os rituais, danças e lutas nas pinturas rupestres. Posteriormente, povos como os gregos, romanos, egípcios e civilizações pré-colombianas destacaram-se por pinturas, esculturas e vasilhame esteticamente sofisticados.
A partir do século XI, a base do artesanato se materializou nas oficinas, onde o mestre artesão ensinava as técnicas para os aprendizes. Estabeleceram-se, ainda, as Corporações de Ofício, que eram instituições regulamentadoras do processo produtivo. Com a Revolução Industrial, no final do século XVIII, os espaços de confecção artesanal foram reduzidos e sua existência persistiu em comunidades tradicionais e em segmentos sociais que reconheceram sua importância e preservaram a memória cultural.
Os Primeiros artesãos e a colonização do Brasil
Os indígenas são os primeiros artesãos brasileiros, pois antes mesmo da chegada dos portugueses, no século XV, eles produziam manualmente diversos itens, como cestos, cerâmicas, tinturas, armas de arco e flecha, ornamentos de penas e plumas, além das vestimentas, máscaras, tinturas e a própria moradia. Como o montante populacional era vasto, por volta de 5 milhões segundo estimativa do antropólogo Mércio Pereira Gomes, as particularidades de cada tribo geraram intensas variedades nas peças, sobretudo pelo fato das matérias-primas serem provenientes da riquíssima flora brasileira, até então preservada de grandes intervenções humanas.
O conhecimento de trançados e cestarias é preservado há séculos pelos indígenas, com destaque para as tribos do alto Amazonas e Solimões, influenciados pelos povos andinos.
Nos primeiros anos da colonização, a metrópole portuguesa enviou os chamados oficiais mecânicos, que incluíam caieiros, carpinteiros, ferreiros, telheiros, calafates e ferreiros, e também a Companhia de Jesus da Assistência de Portugal, cujos membros denominados jesuítas, eram responsáveis por ensinar as artes e ofícios. Seguindo as relações mercantis e produtivas da época, visava-se a expansão dos colégios pelo mundo e a conservação do espírito religioso entre os artífices. Inúmeras oficinais artesanais foram estabelecidas ao longo do território nacional de modo a promover as habilidades dos trabalhadores.
Em adição, conforme a arqueóloga Camilla Agostini, os africanos escravizados tiveram destaque no desenvolvimento dos ofícios no Brasil, mesmo com a negação de seus conhecimentos nas fazendas de engenho. Seus saberes eram transmitidos pela prática cotidiana e pela oralidade, de modo a preservar a história e os costumes de seus povos em um contexto de barbaridade extrema, além de integrarem rituais religiosos. Eles influenciaram a concepção da cerâmica neobrasileira nos objetos de ferro e pedra-sabão e em cachimbos cerâmicos decorados.
Ciclo do Ouro
No decorrer do século XVIII, a mineração promoveu alterações significativas na estrutura da colônia, incluindo um intenso crescimento populacional. Nesse período, foram recebidos muitos migrantes portugueses que eram mestres artesãos e contribuíram na modificação do teor estético e do fazer artesanal brasileiro. Simultaneamente, surgiu o barroco, estilo de grande qualificação técnica, elegante, rico em detalhes e marcado por obras de Aleijadinho e do Mestre Valentim da Fonseca e Silva. Os principais trabalhos realizados eram altares, entalhes em madeira, igrejas e esculturas em pedra-sabão.
O aumento da demanda no mercado consumidor da colônia expandiu a produção manufatureira, com destaque para o uso do algodão. A produção têxtil, antes restrita ao âmbito doméstico, ampliou sua abrangência e iniciou uma modesta autonomia em relação aos produtos de Portugal. Porém, essa configuração foi dissolvido com a Carta Régia de 30 de julho de 1766, assinada por D. José, que determinou a destruição das oficinas de ourives e considerou ilegal a profissão. Pretendia-se destinar a mão de obra à agricultura e à extração de ouro.
A Basílica de Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas, contém obras do Barroco mineiro esculpidas por Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho.
Nos anos seguintes, o ofício continuou sendo perseguido, de modo que, em 1785, a Rainha Maria I, desautorizou inclusive a tecelagem caseira, permitindo apenas a confecção das vestimentas para os indivíduos escravizados. A proibição se deu por razões mercantilistas. Temia-se que a produção colonial sobrepusesse a importação dos itens europeus, o que divergia tanto dos interesses portugueses em manter vantagem na balança comercial quanto dos acordos comerciais firmados com outros países que restringiam o progresso da manufatura colonial.
Eu a rainha. […] hei por bem ordenar, que todas as fábricas, manufaturas, ou teares de galões, de tecidos, ou de bordados de ouro, e prata […]; excetuando tão somente aqueles dos ditos teares, e manufaturas, em que se tecem, ou manufaturam fazendas grossas de algodão, que servem para o uso, e vestuário dos negros […]; todas as mais sejam extintas, e abolidas em qualquer parte onde se acharem nos meus domínios do Brasil, debaixo da pena do perdimento, em tresdobro, do valor de cada uma das ditas manufatura (D. MARIA I, 1785. Tradução: Maíra Fontenele Santana).
Com a carta régia do Príncipe regente João VI, de 1808, as medidas anteriores foram revogadas e foi possível retomar a produção de todas as modalidades das atividades artesanais.
Eu o príncipe regente faço saber aos que o presente alvará virem: […] sou servido abolir, e revogar toda e qualquer proibição, que haja a este respeito no Estado do Brasil, e nos meus domínios ultramarinos, e ordenar, que daqui em diante seja o país que habitem, estabelecer todo o gênero de manufaturas, sem excetuar alguma (JOÃO VI, 1808. Tradução: Maíra Fontenele Santana).
Mesmo com a autorização da atividade e com o Decreto de Abertura dos Portos às Nações Amigas, que extinguiu o monopólio português, a Coroa ainda destinava grande parte dos investimentos à produção agrícola e ao tráfico negreiro, enquanto a estruturação do artesanato e da manufatura continuava lenta e restrita.
O fazer artesanal durante o Brasil imperial
Estabelecido o Império, a primeira Constituição brasileira, outorgada em 1824 por D. Pedro I, determinou o fim das corporações de ofício no Brasil em seu Art. 179: “ficam abolidas as Corporações de Officios, seus Juizes, Escrivães, e Mestres” (BRASIL, 1824). No entanto, a admiração do mestre artesão permaneceu na sociedade, bem como as relações com os aprendizes. Assim, a produção artesanal do país continuou restrita à esfera doméstica, sem grandes participações nas exportações e com o intuito de suprir as aspirações locais.
Ao longo dos anos, o artesanato figurou como um importante contribuinte para a economia do império: estima-se que manufatura, mineração, transporte e artesanato eram responsáveis por 7% da arrecadação total. Nesse período, foram pressupostas as primeiras ideias do que seria a Indústria brasileira, mas, na prática, as oficinas artesanais ainda eram dominantes mesmo com esses estabelecimentos apelidados de “manufaturas” ou “fábricas”. A transição permanecia lenta e havia forte presença de técnicas rudimentares. Confeccionava-se lã, rapé, seda, sabão e velas de sebo através de trabalhadores livres e escravizados.
As primeiras políticas públicas do artesanato
O artesanato foi desconsiderado tanto na Carta da República de 1891, quanto na Constituição de 1934. Porém, a Constituição de 1937, outorgada durante o regime autoritário do Estado Novo, propôs que “O trabalho manual tem direito à proteção e solitudes especiais do Estado”, esboçando os primeiros indícios de políticas públicas para o setor. As cartas subsequentes silenciaram-se com relação ao artesão.
O início do século XX marcou a concentração econômica no sudeste brasileiro, em especial no Rio de Janeiro e em São Paulo. As oficinas artesanais existentes contribuíam para o acúmulo de capital, principalmente aquelas administradas por estrangeiros imigrantes. Desse modo, os primeiros projetos a atenderem o artesanato voltaram-se para regiões Norte e o Nordeste do país, que não eram tão beneficiadas pela conjuntura econômica que surgiria com a transição das oficinas para as indústrias.
Assim, a atividade foi utilizada como instrumento de esperança para que populações afastadas do eixo Centro-Sul superassem os problemas socioeconômicos. Como as oportunidades de emprego eram reduzidas para mulheres e menores de idade, o artesanato ocuparia um papel de ocupação e fonte de renda. Na década de 1950, grupos e instituições disponibilizaram assistência técnica e financeira para que as manifestações culturais do país fossem estudadas, como o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos do Ministério da Educação e Cultura (INEP/MEC) e o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial da Confederação Nacional da Indústria (Senai/CNI).
Durante o segundo governo de Vargas, em 1951, foi requerida a criação do Branco do Nordeste do Brasil (BNB), através do projeto de lei nº 1346/1951, de modo a estabelecer o artesanato como atividade econômica que gera emprego e renda. O plano foi concretizado com a lei nº 1649/1952, que propõe a concessão de empréstimos a fim de estimular a atividade. Iniciativas no Nordeste foram importantes para a consolidação do setor, tendo o estado da Bahia como precursor. O Instituto Feminino Visconde de Mauá, por exemplo, foi fundado em 1939 e tinha como foco colocar as mulheres em condições de agentes dos seus trabalhos.
Além disso, o movimento modernista brasileiro englobava a noção desenho industrial ao pregar um afastamento da produção artesanal, pois se pautava na universalidade, racionalidade e impessoalidade. A configuração política do Brasil era compatível com o movimento: durante o governo de Juscelino Kubitschek incentivou a industrialização e obras de infraestrutura. Todavia, o fracasso das exportações industriais do país, tanto pela ausência de pluralidade quanto pela ineficiência tecnológica, e as críticas ao modernismo levaram o desenho industrial a valorizar a cultura brasileira e inserir a população no processo de desenvolvimento.
Com o Golpe Militar de 1964, houve a exaltação do nacionalismo e, consequentemente, o artesanato ganhou destaque devido à sua capacidade de gerar símbolos que sustentassem o regime ditatorial e colaborassem com a política de afirmação da identidade brasileira, tendo ênfase na tecelagem. Além disso, presos políticos utilizaram-se da arte artesanal para ressignificar os presídios. As peças foram utilizadas não só como meio de obtenção de rendas para as famílias dos encarcerados, mas também como indícios históricos das lutas e angústias do período.
Quanto aos indígenas, a atividade artesanal permaneceu como importante ferramenta cultural e econômica para as comunidades, o que levou a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) a criar, em 1972, o Programa de Artesanato (Artíndia) para facilitar a comercialização da produção das diversas tribos ao redor do país. Logo depois, com a popularização da informática e a adoção da política neoliberal, voltada para a privatização do Estado brasileiro, o processo de exaltação da cultura nacional, arranjado pelos governos militares, ruiu-se.
Na década de 1990, foi criado o Programa do Artesanato Brasileiro (PAB) pelo Decreto de 21 de março de 1991. Originalmente vinculado ao Ministério da Ação Social, o PAB permanece como o principal órgão do setor e tem o objetivo de coordenar e desenvolver atividades que visem a valorizar o artesão brasileiro, elevando o seu nível cultural, profissional, social e econômico, além de desenvolver e promover o artesanato e a empresa artesanal.
O artesanato no século XXI
Por mais que seja um ofício antigo, a profissão de artesão foi regulamentada apenas em 2015, através da lei nº 13.180. Foi estabelecido que as políticas públicas da atividade seriam pautadas na valorização da identidade e cultura nacionais, na qualificação permanente dos artesãos e na integração da atividade artesanal com outros setores. A formalização ainda previu a identificação de cada pessoa pela Carteira Nacional do Artesão.
Na segunda década do século XXI, a atividade artesanal estava presenciando um acentuado crescimento comercial, alcançando a cifra de dezenas de bilhões de reais anuais no faturamento, segundo o IBGE. Entretanto, no início de 2020, o mundo foi atingido por uma crise sanitária e socioeconômica desencadeada pelo novo coronavírus, denominado SARS-CoV-2. Com a pandemia, artesanato enfrentou queda de 56% nas receitas, conforme apontou estudo da Fundação Getúlio Vargas e do Sebrae. Os principais fatores foram a impossibilidade da realização de feiras, a concorrência desleal com as comunidades afastadas dos grandes centros urbanos e a falta de equipamentos tecnológicos e prática na operação de redes sociais.
O Salão do Artesanato da Paraíba foi um dos eventos adaptados para o formato virtual devido à Covid-19 — Foto: Divulgação/Secom-PB
Nesse sentido, em 2020, o Projeto Estruturação do Sistema de Gestão do Artesanato Brasileiro: Diagnóstico e Planejamento Estratégico nasce de uma idealização do Governo Federal via Programa do Artesanato Brasileiro – PAB, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, com o objetivo de apresentar um levantamento detalhado sobre os problemas e necessidades que atingem o setor, identificando possibilidades de aperfeiçoamento do PAB e das ações voltadas ao desenvolvimento do setor artesanal, melhorando os seus processos, resultados e gestão. Além de analisar os efeitos da pandemia de Covid-19, busca-se uma ampla atuação no território nacional, o que contribui para que muitos representantes do setor público e privado participem na sua consolidação.
Portanto, a trajetória do artesanato nas terras brasileiras foi moldada pelo projeto de mercantilização e ocupação do território adotado pela Coroa Portuguesa, e pelas trocas culturais entre os povos residentes, os migrantes e os escravizados. Durante os quase quatro séculos de domínio europeu, houve decisões controversas que estagnaram ou impediram o desenvolvimento dos ofícios no Brasil. Na República, a atividade enfrentou fases de abandono e instabilidades até atingir o reconhecimento como instrumento econômico e cultural, amparado por políticas públicas, e a profissão de artesão ser regulamentada.
Logo, é o momento de construirmos um cenário colaborativo que preserve e valorize essa atividade que resulta do fazer humano e consegue contar histórias através de produtos. O repertório cultural, a criatividade e as habilidades dos artesãos, associam-se à diversidade de matérias-primas e à multiplicidade de técnicas para compor obras que dão forma à identidade de cada grupo, comunidade e território existente no Brasil.
As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e de inteira responsabilidade do autor, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Ministério da Economia e do Programa do Artesanato Brasileiro.
Referências
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TRAJETÓRIA DO ARTESANATO BRASILEIRO: PERSPECTIVA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS Brasília 2020. [S.l.]: , [S.d.]. Disponível em: <https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/40378/1/2020_MairaFonteneleSantana.pdf>.
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Todo artesão deveria saber ,de onde veio como iniciou o artesanato brasileiro e toda perspectiva do nosso artesanato E a força e a beleza de nosso ARTESANATO contribuído para geração de renda e preservando nossa arte e cultura tendo apoio do SEBRAE do PAB. E atualmente a UFMG.
Com certeza, Hercilia! É muito importante conhecer a própria história, pois auxilia na construção de um futuro melhor. Agradecemos a leitura!
Espero que está pesquisa venha colaborar,para que possa valorizar do artesão com oficinas para aprimorarem sua artesanato e para ajuda de custo e divulgação do mesmo.