Políticas públicas do artesanato brasileiro

AUTORIA: Ari Rodrigues

Os primeiros indícios do artesanato remetem ao período neolítico (cerca de 6000 a.C.) e apontam para o suprimento de necessidades básicas das populações humanas durante a transição da condição de nômades para sedentários, através de cerâmicas para armazenar alimentos e pinturas que registravam os aspectos culturais das comunidades, dentre outros gêneros. Posteriormente, o ofício adquiriu conotação comercial, circulando primeiro na configuração de escambo entre mercadorias e segundo como venda graças à adoção da moeda. 

No contexto brasileiro, o modelo de ocupação estabelecido pela Coroa Portuguesa não foi favorável ao desenvolvimento pleno do artesanato, pelo contrário, houve decretos proibindo a atividade, além da política econômica adotada em mais de três séculos de colonização, com foco nas importações. Porém, mesmo com o despontar da República Federativa, o ofício foi desconsiderado tanto na Carta da República de 1891 e quanto na Constituição de 1934.

Nesse sentido, ao passo que o artesanato engloba, entre outros aspectos da vida em sociedade, a economia e a cultura, torna-se imprescindível a adoção de um conjunto de medidas que guie os contextos envolvidos desde o processo produtivo até as vendas, a fim de atender os atores que compõem essa importante atividade e facilitar as trocas artísticas e monetárias com o público externo. Ou seja, a adoção de políticas públicas que amparem e estimulem o setor.

O que são políticas públicas

Conforme o manual “Políticas Públicas: conceitos e práticas” do Sebrae, são a totalidade de ações, metas e planos que os governos nos níveis nacionais, estaduais ou municipais traçam para alcançar o bem-estar da sociedade e o interesse público. O poder legislativo (vereadores, deputados e senadores) é responsável pela definição de medidas que impactarão o cotidiano coletivo, ao passo que o poder executivo (prefeitos, governadores e presidente) realiza sua implementação.

Os trâmites de elaboração, discussão e execução das políticas pública envolve, principalmente, duas categorias de atores: estatais e privados. Os atores estatais são os políticos, indivíduos eleitos pela sociedade para ocupar um cargo em um tempo determinado, e os servidores públicos, que atuam na burocracia de forma permanente. Enquanto os atores privados são grupos que não possuem vínculo direto com a estrutura administrativa do Estado, como a imprensa, grupos de pesquisa e sindicatos.

O processo de formulação de políticas públicas envolve cinco etapas: formação da agenda com a seleção das prioridades, formulação de políticas, tomada de decisão, implementação das ações e avaliação, de modo que todas as fases possuem acentuada interdependência. O setor artesanal conta com o Programa do Artesanato Brasileiro (PAB), gerido pelo governo federal e que coordena e desenvolve atividades que visem a valorizar o artesão brasileiro, elevando o seu nível cultural, profissional, social e econômico, além de desenvolver e promover o artesanato e a empresa artesanal, segundo a definição oficial do órgão. 

Neste caso, os deputados federais e os senadores aprovam o orçamento que será utilizado em cada política pública, os governadores e os deputados estaduais tratam do âmbito estadual, e em cada município, a atuação é dos prefeitos e vereadores. Além disso, estão envolvidos os ministros de Estado e os servidores do Ministério da Economia. Por outro lado, os artesãos e suas associações, as instituições que apoiam o desenvolvimento de micro e pequenas empresas e dedicam-se ao empreendedorismo, como o Sebrae, além de grupos relacionados ao turismo e à cultura são os atores privados envolvidos nessa política. 

Políticas públicas são fundamentais para o setor

Ao conquistar espaço em elementos da vida em sociedade, fez-se necessário a adoção de medidas de incentivo ao artesanato.

O despontar das políticas públicas 

Se no período anterior à colonização portuguesa, o fazer artesanal estava voltado às atividades cotidianas e culturais dos indígenas, nos primeiros anos do século XX, ele foi uma alternativa para problemas socioeconômicos, como alto índice de desemprego e desigualdade social, que as regiões fora do eixo São Paulo e Rio de Janeiro enfrentavam de modo mais intenso. Um fator incentivador para a atividade era o investimento inicial relativamente baixo.

O setor artesanal foi contemplado com as primeiras políticas públicas durante o regime ditatorial do Estado Novo, sob comando de Getúlio Vargas, em um momento que o país atravessava uma transição da produção manual para a industrial em função de uma política de concentração no mercado interno, com a substituição das importações dos bens de consumo. Nesse contexto, alguns imigrantes acumularam capital com algumas atividades intermediárias entre o industrial e o artesanal.

Assim, as ações primárias para estimular o setor concentraram-se nas atividades domésticas e rurais, sobretudo devido aos trabalhadores estarem ociosos na entressafra na produção agrícola e em razão da baixa qualificação destes para a produção industrial. Logo, a política em prol do artesanato era compreendida como uma ação conveniente, em especial, para as regiões classificadas como subdesenvolvidas. Em paralelo, não se trabalhava com afinco a emancipação financeira do artesão nem sua ascensão social, configurando políticas fundamentadas na diferença de classes sociais.

A Bahia foi o estado percursor no estabelecimento de políticas públicas para o artesanato. Criou-se o Instituto Feminino Visconde de Mauá (1939), inicialmente centrado na produção de vestidos e chapéus e o bordado, que visava “manter e dirigir a indústria de confecção em domicílio, alçando a mulher à condição de agente do seu trabalho, à frente da fabricação de artefatos” (INSTITUTO MAUÁ). Após diversas mudanças no formato de trabalho, a entidade teve suas atividades encerradas em 2014, sendo a política artesanal de maior duração. Em adição, projetou-se a Escola de Desenho Industrial e Artesanato, em 1959, porém a ideia nunca foi concretizada.

A década de 1950 foi marcada pela estruturação dos planos para o ofício. Apesar de instituições como o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial da Confederação Nacional da Indústria (Senai/CNI) e o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos do Ministério da Educação e Cultura (INEP/MEC) promoverem assistências e estudos em relação ao setor, o grande marco foi a criação do Banco do Nordeste do Brasil (BNB), em 1952. A organização ratificou o artesanato como atividade econômica e ofereceu relevante assistência através de empréstimos. A legislação estimulava o “desenvolvimento e criação de indústrias, inclusive artesanais e domésticas, que aproveitem matérias-primas locais, que ocupem com maior produtividade as populações ou que sejam essenciais à elevação dos seus níveis de consumo essencial” (BRASIL, 1952, p. 03).

Nacionalmente, em uma das experiências iniciais de política pública, elaborou-se o Programa de Assistência ao Artesanato Brasileiro (PAAB), em 1961, gerido pelo Ministério da Educação e Cultura, cuja duração foi de apenas seis meses em função de questões administrativas e financeiras. Aspirava-se a promoção de capacitação aos artesãos e artesãs, bem como estruturação de estudos sobre aspectos socioeconômicos e culturais, e uma ampla articulação entre os atores envolvidos para uma exposição permanente do ramo, porém, não houve execução.

Estudos e pesquisas

Sob a vertente de identificação das condições técnicas e econômicas do artesanato, em 1947, a Universidade Federal da Paraíba (UFPB) realizou o cadastramento dos artesãos estaduais, figurando ao lado da Bahia, como pioneiros nessa ação. Em 1962, foi a vez do Ceará destrinchar o artesanato estadual a partir da Divisão de Intercâmbio e Assistência Técnica do Departamento Nacional do Serviço Social da Indústria (SESI), com foco nos aspectos fotográficos e cinematográficos da produção.

Em 1966, o governo baiano promoveu a Coordenação de Fomento ao Artesanato (CFA) com intuito de realizar pesquisas a respeito do artesanato, cadastrar os artesãos do estado, aperfeiçoar as técnicas empregadas, além de auxiliar na gestão da comercialização das obras, tendo as feiras e exposições como seus meios principais, sobretudo na atualidade.

Sudene

A criação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), em 1959, impactou intensamente as questões sociais e econômicas desta região por tratar de aspectos como infraestrutura, recursos minerais e saúde pública. Contou com quatro planos diretores com duração de três anos cada. Em relação ao artesanato, o I Plano Diretor da Sudene (1961) objetivava “a melhoria dos padrões artísticos, o treinamento de aprendizes, orientação técnica para melhoria do rendimento dos processos adotados, adequação ao mercado, financiamento e garantia de preços” (BRASIL, 1966a, p. 191). 

Por outro lado, o II Plano Diretor (1963) teve como meta aumentar o número de cooperativas artesanais e o progresso do setor, o III Plano Diretor (1966) enfatizou o artesanato utilitário e a indústria artesanal e o IV Plano Diretor pretendia a “liquidação da marginalidade econômica da ocupação artesanal” (BRASIL, 1966d, p. 173).

Vale do Jequitinhonha

No Vale do Jequitinhonha, norte de Minas Gerais, criou-se a Comissão de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha (Codevale), em 1964, com o interesse em prosperar a região, onde a prática artesanal era expressiva e disseminada no território. Em 1972, a Codevale construiu o Programa de Apoio ao Artesanato para treinar os artesãos, organizar associações e guiar a comercialização das peças, com a revenda para consumidores finais nos grandes centros urbanos. Destacou-se também a preservação cultural e o repasse entre gerações para a manutenção da originalidade das técnicas.

Artesanato no Vale do Jequitinhonha

Localização geográfica do artesanato do Vale do Jequitinhonha e suas tipologias. Fonte: Codevale, 1982, p.50.

Programa do Artesanato Brasileiro (PAB)

O órgão responsável pela implementação de políticas públicas do artesanato é o Programa do Artesanato Brasileiro (PAB). Criado em 1991, é atualmente vinculado à Subsecretaria de Desenvolvimento das Micro e Pequenas Empresas, Empreendedorismo e Artesanato da Secretaria de Desenvolvimento da Indústria, Comércio, Serviços e Inovação, do Ministério da Economia. É composto por uma coordenação nacional e outras vinte e sete coordenações estaduais. 

Inicialmente, estava associado ao Ministério da Ação Social (MAS) com supervisão da Secretaria Nacional de Promoção Social (SNPS) e, conforme o decreto nº 74372.221, propunha-se a “promover o  artesanato  e  a  empresa  artesanal”. Posteriormente, foi transferido para o Ministério do Bem-Estar Social (MBES), via Secretaria de Promoção Humana. Em 1995, sua gestão ficou a cargo do Ministério da Indústria, Comércio e Turismo (MICT). A portaria nº 1007-SEI, de 2018, estabeleceu a instituição como elemento do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC), no entanto, em 2019, pelo decreto nº 9734, o PAB passou a compor o Ministério da Economia.  

Artesanato e empreendedorismo

A partir da década de 1970, o artesanato foi envolvido pelo discurso da rentabilidade econômica na constituição da riqueza nacional. Em décadas posteriores, parcerias entre os setores público e privado estabeleceram uma reestruturação da produção sob as novidades do contexto do trabalho, com a ênfase no empreendedorismo como ferramenta para a redução do desemprego, conservando a ideologia da liberdade de mercado e conquistas socioeconômicas da atividade autônoma. Portanto, apesar das políticas sociais, o artesanato foi relacionado estreitamente à economia, de modo que a cultura foi distanciada e, vista como negócio, obteve menos incentivos em políticas públicas. 

Em 2003, a cultura adquiriu atenção novamente com a reestruturação do Ministério da Cultura e a elaboração do Plano Nacional de Cultura (PNC) e do Sistema Nacional de Cultura (SNC). Em 2005, o PNC adquiriu propostas para seu documento-base durante a I Conferência Nacional de Cultura (I CNC). Outrossim, a II Conferência Nacional de Cultura (II CNC), de 2010, propôs as diretrizes para as políticas de cultura, pautadas em: perspectiva territorial, institucionalização do SNC, aprovação do PNC e encaminhamento de novas leis ao Congresso Nacional. 

A criação do Plano Setorial do Artesanato (2017) promoveu uma consulta pública no ano anterior, que apontou os eixos primordiais do planejamento para o período de 2016 a 2025: criação e produção, formação e capacitação, divulgação, distribuição, comercialização, fortalecimento do Artesanato, economia, sustentabilidade ambiental e inovação (Ministério da Cultura, 2017). A Secretaria Especial de Cultura do Ministério da Cidadania foi transferida para o Ministério do Turismo, conforme Decreto Nº 10.107, de 06/11/2019.

Carteira Nacional do Artesão

Segundo definição do PAB, o Sistema de Informações Cadastrais do Artesanato Brasileiro (SICAB) foi desenvolvido com o propósito de prover informações necessárias à implantação de políticas públicas e ao planejamento de ações de fomento para o setor artesanal. É responsável pelo cadastramento único dos artesãos do Brasil através da emissão da Carteira Nacional do Artesão, sendo a identificação do artesão, prevista na Lei nº 13.180, de 2015. Essa legislação regulamente a profissão de artesão.

Esse documento permite o acesso a políticas públicas desenvolvidas pelo Programa do Artesanato Brasileiro (PAB) e Coordenações Estaduais do Artesanato. Além da possibilidade de participação em feiras de artesanato nacionais e internacionais, cursos e oficinas de artesanato, há ainda isenção do ICMS na comercialização dos produtos, facilidade de acesso ao microcrédito, incentivos fiscais em alguns estados da federação, acesso à nota fiscal avulsa de Emissão Eletrônica (e-NFA) e possibilidade de ser contribuinte autônomo para fins previdenciários.

Artesanato de cestarias

A confecção de cestarias é uma das práticas mais antigas dos artesãos, que tiveram a profissão reconhecida em 2015.

Desse modo, a construção das políticas públicas do artesanato alterou-se segundo a concepção que a atividade formou ao longo das últimas décadas, de alternativa para a redução de problemas socioeconômicas de algumas regiões do Brasil para um importante ramo da economia nacional. Essa trajetória despontou no nordeste do país, com raras ações que envolvessem o cenário brasileiro, atravessou a agenda neoliberal, com o foco no empreendedorismo, que permaneceu na conjuntura financeira e foi importante em cenários complexos, como a pandemia de Covid-19.

Além disso, a atividade artesanal não é estática. Algumas comunidades presam pela manutenção de técnicas tradicionais através do repasse entre gerações, porém, no âmbito geral, os artesãos têm utilizado do avanço tecnológico para aprimorar técnicas e a comercialização de seus produtos. O planejamento e a implementação de novas políticas públicas, assim como a revisão das existentes, devem considerar as transformações ocorridas, de modo a atender as principais reivindicações dos atores da atividade e proporcionar melhores condições desde a idealização das peças até a fidelização de clientes. 

Sob esse viés, através de uma iniciativa do Programa do Artesanato Brasileiro, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o Projeto Estruturação do Sistema de Gestão do Artesanato Brasileiro: Diagnóstico e Planejamento Estratégico tem como propósito a elaboração do primeiro diagnóstico do artesanato nacional que permita identificar os problemas que afetam o segmento, bem como estruturar propostas para o aperfeiçoamento das políticas públicas e da legislação federal em vigor destinadas ao desenvolvimento do setor artesanal.

As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e de inteira responsabilidade do autor, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Ministério da Economia e do Programa do Artesanato Brasileiro.

Referências

Cadastramento Único dos Artesãos do Brasil. Disponível em: <https://www.gov.br/empresas-e-negocios/pt-br/artesanato/cadastro-1/sistema-de-informacoes-cadastrais-do-artesanato-brasileiro-sicab>.

Carteira Nacional do Artesão e do Trabalhador Manual: Como emitir? Disponível em: <https://artesanatonarede.com.br/artigo/carteira-nacional-do-artesao-e-do-trabalhador-manual-como-emitir/>.

CODEVALE. Plano Diretor para o Vale do Jequitinhonha: Parte I. Belo Horizonte: [s. n.], 1982.

Políticas públicas: conceito e prática. Série políticas públicas. Volume 7. SEBRAE MG. Disponível em: <http://www.mp.ce.gov.br/nespeciais/promulher/manuais/MANUAL%20DE%20POLITICAS%20P%C3%9ABLICAS.pdf>. 

Programa do Artesanato Brasileiro (PAB). Disponível em: <https://www.gov.br/empresas-e-negocios/pt-br/artesanato/conheca-o-pab/programa-do-artesanato-brasileiro-pab-1>.

SANTANA, Maria Fontenele. Trajetória do Artesanato Brasileiro: perspectivas das políticas públicas. Disponível em: <https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/40378/1/2020_MairaFonteneleSantana.pdf>.

Vista do Artesanato e políticas públicas no Brasil. Disponível em: <https://revistas.uece.br/index.php/revistaconhecer/article/view/3499/3361>.

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