AUTORIA: Ari Rodrigues
As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e de inteira responsabilidade do autor, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Ministério da Economia e do Programa do Artesanato Brasileiro.
O artesanato é um ofício extraordinariamente adaptável, criativo e potente. Inicialmente, era utilizado para funções básicas de sobrevivência, como confecção de ferramentas e armazenamento de alimentos através das cerâmicas, e para retratar hábitos das comunidades com esculturas e pinturas rupestres. Posteriormente, a atividade foi marcante para a consolidação da cultura de diversos povos ao redor do mundo, com destaque aos gregos, romanos, egípcios e civilizações pré-colombianas. Então, diante da trajetória construída até aqui e do cenário atual, o que esperar do futuro?
No passado, o artesanato brasileiro foi moldado pelo paradigma de ocupação do território nacional, enfrentou proibições de modalidades e limitações comerciais no período colonial e uma política de abandono e desestímulo durante o Império e os primeiros anos da República, até consolidar-se como atividade fundamental para a economia e a cultura do país. A rica diversidade de obras e técnicas nasceu da convivência e trocas culturais entre indígenas, africanos escravizados e imigrantes europeus e asiáticos.
No presente, após um êxito crescente na comercialização das peças artesanais, a pandemia de Covid-19 alterou profundamente a dinâmica da atividade, que passou a integrar exclusivamente o meio virtual em razão da não realização de feiras presenciais. Se antes a venda on-line era uma alternativa, hoje é imprescindível. Devido à urgência das mudanças, muitos atores do artesanato têm enfrentado dificuldades de adaptação por não possuírem os equipamentos tecnológicos necessários e/ou a prática para atuar no mundo digital, o que compromete a renda de famílias e comunidades locais.
Então como será daqui em diante? Fazer previsões é, por vezes, uma tarefa ingrata. Circunstâncias múltiplas podem intervir na execução de um planejamento, como foi o advento do novo coronavírus em um ótimo momento para o setor artesanal. No entanto, é imprescindível aspirar à melhoria nas condições de vida das populações e isso só é possível a partir de um planejamento sólido pautado na cooperação. Assim, o artesanato é uma atividade fundamental tanto para o cuidado com o indivíduo e sua dignidade, quanto para a preservação dos espaços da existência humana.
A elaboração da Agenda 2030
A conjuntura que rege as sociedades contemporâneas está pautada na interdependência entre os países que compõem o globo terrestre. A globalização estabelece a livre circulação de informações, pessoas, bens e serviços em uma velocidade exorbitante de modo a promover intensas melhorias no cotidiano humano. Por outro lado, as adversidades existentes também deixaram de ser restritas em certos locais e atingiram o patamar coletivo, como a transmissão de doenças.
Há, ainda, questões como a pobreza e a fome, inacesso a direitos básicos, como saúde, educação e moradia, além dos cuidados com o meio que abriga os humanos e o próprio estado de paz entre tantas nações detentoras de culturas e ambições divergentes. O historiador Yuval Noah Harari afirma que problemas globais exigem respostas globais e, para tanto, cada membro deve conter o ultranacionalismo que institui qualquer categoria de superioridade sobre os outros.
A questão ambiental, por exemplo, é uma das mais complexas em virtude do modelo econômico adotado majoritariamente nos países da Terra, pois este estimula o consumo excessivo e desencadeia queimadas, desmatamento, emissão de poluentes na atmosfera e na hidrosfera, além do acúmulo de resíduos. A combinação desses fatores já está provocando graves danos ao planeta e ao modo de vida na Terra, e aponta para uma tendência de inviabilização das condições de sobrevivência de gerações futuras.
Segundo Harari, medidas locais, mesmo que aparentemente efetivas, são insuficientes para lidar com o problema de quase oito bilhões de indivíduos:
“Há, portanto, muitas coisas que governos, corporações e indivíduos podem fazer para evitar a mudança climática. Mas para que sejam eficazes devem ser feitas num nível global. Quando se trata de clima, os países simplesmente não são soberanos. Estão à mercê de ações realizadas por pessoas no outro lado do planeta.” (21 lições para o século 21)
Nessa perspetiva, com base na necessidade de agir comunitariamente contra os problemas que assolam o mundo, durante encontro em 2015, representantes dos 193 Estados-membro da Organização das Nações Unidas (ONU) definiram que a erradicação da pobreza é o ponto central para viabilizar o desenvolvimento sustentável. Ademais, foram discutidos múltiplos tópicos fundamentais para promover o bem-estar social ao longo do globo e estes compuseram o documento “Transformando o Nosso Mundo: A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável” (A/70/L.1), que materializou o compromisso global de conceber um mundo melhor.
A ONU Brasil publicou um vídeo em seu canal do YouTube ratificando a importância de agirmos coletivamente para que todos tenham oportunidades justas na vida, seja quem for e onde estiver.
Nesse sentido, a Agenda 2030 é um plano de ação colaborativo pautado em 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e 169 metas, que compreendem quatro dimensões principais: a social aborda as necessidades humanas; a ambiental trata da preservação do meio ambiente e das ações contra a mudança climática; a econômica atenta-se aos recursos naturais pertinentes às principais atividades globais e a institucional envolve os mecanismos práticos do planejamento.
Os dezessete Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) para um futuro mais justo – Reprodução: Nações Unidas Brasil.
Artesanato e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)
Desse modo, a atividade artesanal mostra-se estritamente conectada aos objetivos apresentados pela Agenda 2030. Não se configura como única solução, sobretudo se analisado apenas o contexto brasileiro, mas possui uma contribuição fundamental para aprimorar a qualidade de vida dos atores envolvidos direta e indiretamente e propor uma sociedade melhor, que se atenta a temas que permeiam o percurso da vida, e pode atingir resultados surpreendentes em conjunto com outros países.
Quando incentivado adequadamente através de políticas públicas, o artesanato atua como fomentador do comércio sustentável, gerador de renda e movimentador do mercado local, auxiliando comunidades indígenas, quilombolas e interioranas. Assim, alguns Objetivos de Desenvolvimento Sustentável possuem conexão direta com o artesanato, em especial: ODS 5 – Igualdade de Gênero, ODS 8 – Trabalho decente e crescimento econômico e ODS 12 – Consumo e produção responsáveis.
ODS 5
O quinto objetivo tem como lema “alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”, sendo alguns pontos de seu detalhamento:
“5.1 Acabar com todas as formas de discriminação contra todas as mulheres e meninas em toda parte;
5.5 Garantir a participação plena e efetiva das mulheres e a igualdade de oportunidades para a liderança em todos os níveis de tomada de decisão na vida política, econômica e pública;
5.a Realizar reformas para dar às mulheres direitos iguais aos recursos econômicos, bem como o acesso à propriedade e controle sobre a terra e outras formas de propriedade, serviços financeiros, herança e os recursos naturais, de acordo com as leis nacionais.” (Nações Unidas Brasil)
Conforme dados da PNAD Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua) 2019, as mulheres são 51,8% da população brasileira e os homens são 48,2%. Porém, ao observar a proporção entre artesãos e artesãs, a tendência não é de igualdade, pois uma pesquisa do mesmo ano aponta que cerca de 90% da produção artesanal é realizada por mulheres. Em 2015, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), eram 80% do total.
O estudo Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil evidencia a desigualdade de gênero no mercado de trabalho. Por exemplo, em 2019, as mulheres dedicaram, em média, 21,4 horas semanais em afazeres domésticos, contra 11 horas dos homens. Em adição, o nível de ocupação entre maiores de 15 anos era de 54,5% para as mulheres e 73,7% para os homens. Os dados apontam, ainda, que as mulheres obtiveram apenas 77,7% dos rendimentos dos homens.
Logo, incentivar o artesanato é proporcionar a geração de renda para muitas mulheres e estimular a independência financeira, pois, historicamente, elas sofrem entraves na inserção no mercado de trabalho, em função de múltiplas jornadas – cuidados com a casa, com a família e consigo. A carga pesada é fator decisivo na redução da ocupação formal das mulheres e para o remanejamento de ocupações com remunerações menores.
ODS 8
O oitavo objetivo visa “promover o crescimento econômico inclusivo e sustentável, o emprego pleno e produtivo e o trabalho digno para todos”, orientando-se em:
“8.3 Promover políticas orientadas para o desenvolvimento que apoiem as atividades produtivas, geração de emprego decente, empreendedorismo, criatividade e inovação, e incentivar a formalização e o crescimento das micro, pequenas e médias empresas, inclusive por meio do acesso a serviços financeiros;
8.5 Até 2030, alcançar o emprego pleno e produtivo e trabalho decente para todas as mulheres e homens, inclusive para os jovens e as pessoas com deficiência, e remuneração igual para trabalho de igual valor;
8.8 Proteger os direitos trabalhistas e promover ambientes de trabalho seguros e protegidos para todos os trabalhadores, incluindo os trabalhadores migrantes, em particular as mulheres migrantes, e pessoas em empregos precários.” (Nações Unidas Brasil)
O artesanato possui enorme influência sobre a dinâmica do comércio local, sobretudo com a realização de feiras, conectando-se a outras atividades econômicas, como o setor alimentício e o turismo. O impacto gerado pelo ofício é expressivo, pois garante o sustento de famílias e até de comunidades inteiras e impulsiona tudo ao seu entorno. Portanto, a elaboração de políticas públicas que estimulem a atividade é necessária, em especial para restaurar as perdas geradas pela pandemia de Covid-19.
ODS 12
O décimo segundo objetivo direciona-se para “garantir padrões de consumo e de produção sustentáveis”, aspectos já presentes no artesanato brasileiro, e devem expandir-se a fim de:
“12.2 Até 2030, alcançar a gestão sustentável e o uso eficiente dos recursos naturais;
12.5 Até 2030, reduzir substancialmente a geração de resíduos por meio da prevenção, redução, reciclagem e reuso;
12.8 Até 2030, garantir que as pessoas, em todos os lugares, tenham informação relevante e conscientização para o desenvolvimento sustentável e estilos de vida em harmonia com a natureza.” (Nações Unidas Brasil)
O artesanato diverge do paradigma industrial por utilizar um percentual significativo de matérias-primas de origem natural, cuja aquisição provoca prejuízos ambientais relativamente menores, além da reutilização de itens graças à transformação criativa. A durabilidade dos produtos é maior, pois não há adoção da obsolescência programada, isto é, o estabelecimento do tempo de vida útil de um produto a fim de estimular o consumo de versões mais atualizadas.
A reciclagem é um instrumento importante e, aliada ao upcycling, que trata do reaproveitamento de um objeto sem alterar em grande escala suas propriedades originais, representa a redução do acúmulo de resíduos. Assim, o que seria mais uma troca comercial fomenta a mudança de atitude em uma comunidade inteira, com a substituição do consumo excessivo, estímulo à conservação dos recursos naturais, além do retorno econômico que contribui com o desenvolvimento do país.
Aposentadoria do artesão e construção do futuro
No âmbito nacional, outras ações estão sendo arquitetadas no presente para aprimorar o setor artesanal no futuro e, consequentemente, contribuir com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU. O projeto de lei nº 1919/21, em análise na Câmara dos Deputados, propõe a inclusão do trabalhador artesão como segurado especial da Previdência Social através da Carteira Nacional do Artesão.
O projeto tem autoria da deputada Maria do Rosário, que apontou como benefícios o aumento na contribuição da Previdência Social e a garantiria direitos básicos a milhões de brasileiros, pois, segundo dados do IBGE de 2015, apenas um décimo dos 10 milhões profissionais eram segurados da Previdência. Para tanto, os artesãos e as artesãs devem atender a critérios como trabalhar em regime de economia familiar e possuir renda inferior ao salário mínimo vigente (R$ 1.100,00).
Desse modo, há também os segurados especiais, considerados os trabalhadores de subsistência do meio rural, indígenas e pescadores artesanais. Para eles, a contribuição ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) foi estabelecida em 1991 e prevê 1,3% sobre o valor bruto da comercialização da produção.
A obtenção de melhores condições no artesanato ocorrerá a partir de diálogos e análises para a elaboração de um plano de ações efetivo.
Portanto, por se tratar de uma atividade com relevante contribuição para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, e representar fonte de renda para milhões de famílias, o artesanato deve receber estímulos para continuar transformando a vida dos artesãos, artesãs e demais públicos envolvidos indiretamente. Faz-se necessário a elaboração de sólidas políticas públicas, bem como o aprimoramento constante das existentes. O Programa do Artesanato Brasileiro (PAB) é o responsável pela elaboração de políticas públicas federais para promover o desenvolvimento integrado do setor artesanal e a valorização do artesão.
O Projeto Estruturação do Sistema de Gestão do Artesanato Brasileiro: Diagnóstico e Planejamento Estratégico, que é uma iniciativa do PAB executada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), será instrumentado para a compreensão do papel que o artesanato desempenha nas culturas locais em que ele está inserido, atrelado aos aspectos socioeconômicos dos atores que o compõem e da comunidade em seu entorno. Para tanto, foi adotada uma abordagem do artesanato em toda a complexidade de sujeitos, dinâmicas, relações e processos que o constituem propiciará o aperfeiçoamento das políticas públicas para o setor.
Referências
BRISELIER ATELIER. A relação entre o artesanato e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) – Briselier. Disponível em: <https://briselier.com/a-relacao-entre-o-artesanato-e-os-ods/>.
CASA. Empoderamento: a importância das mulheres no artesanato. Disponível em: <https://casa.abril.com.br/arte/mulheres-no-artesanato/>.
IFSP. Especial LabSol Artesanato no Ano Internacional da Economia Criativa. Disponível em: <https://bri.ifsp.edu.br/index.php/component/content/article?id=2080>.
IBGE. Estatísticas de Gênero. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101784_informativo.pdf>.
HARARI, Yuval Noah. 21 lições para o século 21. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
Plataforma Agenda 2030. Conheça a Agenda 2030. Disponível em: <http://www.agenda2030.com.br/sobre/>.
REVOLUÇÃO ARTESANAL. A arte de transformar, aliado ao consumo lento, artesanal e consciente. Disponível em: <https://revolucaoartesanal.com.br/arte-de-transformar-aliado-ao-consumo-lento-artesanal-e-consciente/>.
SOUZA, Murilo. Projeto garante condição de segurado especial ao trabalhador artesão – Notícias. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/noticias/788454-projeto-garante-condicao-de-segurado-especial-ao-trabalhador-artesao/>.
UENO, Helena. ROSA, Julio Cesar. O artesanato como uma das alternativas para o desenvolvimento sustentável. Disponível em: <https://caminhosnamata.wixsite.com/caminhosnamata/single-post/2019/07/14/o-artesanato-como-uma-das-alternativas-para-o-desenvolvimento-sustent%C3%A1vel>.
YouTube. Não deixar ninguém para trás. Disponível em: <https://youtu.be/HLG6RIprRzU>.
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Gostei da matéria, sou artesã e sei das dificuldades que enfrentamos ,tanto para escoar nossos produtos como falta de financiamento e outras políticas públicas que apoi e assegure nossos direitos