Território, Sustentabilidade e Artesanato

Sustentável

Imagine que você, um residente do Nordeste do Brasil, realizou a compra de um produto em uma loja virtual do Sul. Assim que ele chega em sua casa, você acaba de encerrar o ciclo daquele item, resultado do esforço e das competências de muitos atores responsáveis por vários microprocessos. O produto foi produzido em local que você não conhece, por pessoas que nunca viu, através de técnicas produtivas que também não faz ideia, nem quais são as matérias-primas necessárias e de onde elas foram extraídas, sequer a história por trás da invenção dele. Em oposição ao artesanato, esse é o retrato da dinâmica industrial contemporânea, marcada pela ausência do contato direto entre quem produz e quem consome um produto padronizado. 

Mas conhecer a origem das coisas e o que envolve a sua produção é realmente importante? Sim, e vamos entender o porquê. Sob a premissa de que os produtos compõem uma rede, que se inicia na extração da matéria-prima até a chegada no consumidor final, é fundamental que esses processos sejam sustentáveis para garantir a realização de todas as atividades no futuro e suprir as necessidades socioeconômicas da atualidade. Nesse sentido, entender as etapas do processo de fabricação e ser seletivo, quando possível, é uma maneira do consumidor incentivar aqueles que realmente se preocupam com as questões ambientais, pois muitos recursos são explorados de modos danosos, além de não contribuir com a geração de riqueza nem com melhoria na qualidade de vida da comunidade local onde é fabricado.

O artesanato se destaca por compreender aspectos econômicos, históricos e socioculturais, além de revelar a contribuição de gerações passadas. A atividade pauta-se na preservação da cultura de um determinado local, na transmissão de saberes e todo um contexto do uso de um território para a manutenção de uma comunidade. Porém, a atividade não está imune a um dos grandes problemas da contemporaneidade: muitas peças artesanais não alcançam quem irá realmente valorizá-las devido à sua importância socioeconômica e cultural. Muitos consumidores não se preocupam com a origem do que adquirem, não sabem quem confeccionou os objetos manuais, suas histórias e porque são bons. Logo, é preciso criar conexões mais precisas entre consumidores atentos a esses aspectos e os artesãos.

Nesse sentido, a professora Lia Krucken contribuiu com o primeiro curso de extensão do projeto no formato remoto, denominado Políticas Públicas e Desenvolvimento do Artesanato, na premissa de que é preciso proteger o patrimônio cultural imaterial, reter e agregar valor a produtos fortemente localizados. O módulo ministrado pela docente teve o objetivo de discutir sobre formas de valorizar recursos, produtos e identidades locais, apresentando autores e projetos realizados no Brasil e no exterior. Durante a capacitação, o diálogo proposto por Lia Krucken partiu da indagação: “como construir redes de colaboração, de produção e de consumo sustentáveis?”.

Território e artesanato

Na obra “Design e território: valorização de identidades e produtos locais”, Krucken discute como a riqueza cultural e a biodiversidade presente em um local proporciona o desenvolvimento de produtos ligados à sua origem e às múltiplas relações estabelecidas temporalmente, e o quão relevante é a busca por alternativas para proteger o patrimônio imaterial e converter as relações comerciais em desenvolvimento para as comunidades.

A valorização de produtos locais carece da percepção dos contextos regionais, como os modos que os produtos são idealizados e confeccionados para então compreender as relações que se formam em torno da produção e do consumo. No caso do artesanato, as obras são resultados das relações estabelecidas por uma comunidade, cujos laços foram tecidos e transformados ao longo de um dado período. Cada item envolve uma relação com a biodiversidade local, conhecimentos tradicionais e razões de consumo.

Nessa perspectiva, estimular o reconhecimento e propor uma reflexão a respeito do consumo realizado por muitas pessoas não é tão simples, pois a economia globalizada gira em torno da competitividade e de preços cada vez menores, movendo uma engrenagem em que só o ato de consumir importa, e não a trajetória percorrida até a chegada ao consumidor final e nem as motivações do produto. O design atua como incremento nesse aspecto, pois é uma ferramenta para comunicar as qualidades intangíveis das obras artesanais e criar um elo de significados entre quem produz e quem compra.

Em função das dimensões continentais do país, a biodiversidade é expressiva e bem disseminada. Isso influencia diretamente na disponibilidade de certas matérias-primas para a produção artesanal. Desse modo, o tipo de produção realizada faz um retrato fidedigno ao local que ela foi realizada e, em conjunto com a técnica empregada, conta a história de ocupação e manutenção daquele espaço geográfico ao longo do tempo. Por exemplo, a região Norte se destaca na confecção de cerâmicas, cestarias, adornos pessoais e enfeites confeccionados com matérias-primas do bioma amazônico e que também apresentam aspectos herdados da cultura indígena, ao passo que no Sul, o artesanato em madeira, a tecelagem em fibras naturais e a cerâmica, incluindo a fabricação de porcelana, apresentam características decorrentes da colonização europeia.

À medida que os itens produzidos em uma comunidade ultrapassam os limites do município ou estado originário, necessita-se estimular a valorização das qualidades locais para que consumidores de outros extremos do país consigam perceber a sensibilidade de cada criação e se sintam estimulados a buscar pela origem do que estão adquirindo. Esse pensamento, se adotado em grande escala, tem poder para unir dois aspectos enriquecedores para o Brasil: a priorização de processos produtivos que primam por menores impactos ambientais e sociais, e o reconhecimento das culturas locais, muitas delas preservadas em comunidades tradicionais, para melhorar a sua qualidade de vida.

Ao consumir um produto ou um serviço, cada indivíduo tem uma percepção única a respeito de sua qualidade e esta, por sua vez, está relacionada às experiências daquela pessoa. A percepção da qualidade em um processo de consumo envolve três modalidades: o que se espera, o que se experimenta e o que se percebe. 

Segundo Lia Krucken, há um conjunto denominado “dimensões de valor” que estrutura a qualidade percebida após a experiência com um produto ou serviço. Isso implica a necessidade de articulação dos valores para que as experiências geradas por um produto e seu processo produtivo sejam as mais agradáveis possíveis, e convida os consumidores a refletirem sobre o impacto de seu consumo sob o meio ambiente, a sociedade e todos os envolvidos na complexa rede de produção.

Estrelas de valor

“Estrela de valor”: dimensões de valor de produtos e serviços. Reprodução: Design e território: valorização de identidades e produtos locais (Lia Krocken).

“valor funcional: refere-se às qualidades intrínsecas do produto, a sua composição, origem e propriedades, à segurança de consumo;

valor emocional: incorpora motivações afetivas ligadas às percepções sensoriais e o sentimento relacionado à compra e ao consumo/utilização do produto;

valor ambiental: vinculado principalmente à prestação de serviços ambientais por meio do uso sustentável dos recursos naturais como as florestas;

valor simbólico e cultural: relaciona-se à importância do produto nos sistemas de produção e de consumo, das tradições e dos rituais relacionados;

valor social: relaciona-se aos aspectos sociais que permeiam os processos de produção, comercialização e consumo dos produtos; 

valor econômico: baseia-se na relação custo-benefício em termos monetários.”

Fonte: Design e território: valorização de identidades e produtos locais (Lia Krucken).

Sustentabilidade e artesanato

Dentre as variadas definições possíveis para a palavra sustentável, destaca-se uma apresentada na Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento das Nações Unidas, em 1987: “desenvolvimento que vai ao encontro das necessidades do presente sem comprometer a habilidade das futuras gerações de satisfazer suas necessidades”. 

Desde o advento da Primeira Revolução Industrial, no século XVIII, o relacionamento entre o homem e o meio que ele ocupa se intensificou de modo a ocasionar graves danos à natureza. O modelo econômico adotado pelos países do globo se estrutura no consumo excessivo e na acumulação infinita e, consequentemente, desencadeia queimadas, desmatamento, emissão de poluentes na atmosfera e na hidrosfera, além do acúmulo de resíduos com largo intervalo de degradação.

A preocupação com a garantia das atividades cotidianas se dá em razão da condição dos recursos naturais que os humanos dispõem: montante significativo deles não são renováveis ou necessitam de largos intervalos de tempo para serem reinseridos ao meio ambiente, o que não consegue competir com a taxa de extração que a humanidade realiza. No entanto, há maneiras de usufruir dos recursos naturais de modo equilibrado, atentando-se a medidas para a recomposição destes pelo planeta, e ainda proporcionar bons retornos econômicos para comunidades locais e para o país todo. O desafio principal é determinar com precisão e seguir o ponto de equilíbrio ambiental.

Dimensões da sustentabilidade e artesanato

Dimensões da sustentabilidade. Reprodução: Design para Sustentabilidade | PPGD – Escola de Design – UEMG (Lia Krucken).

Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável (ODS)

Em 2015, durante um encontro internacional com os 193 Estados-membros, a Organização das Nações Unidas (ONU) estabeleceu a Agenda 2030, sendo um plano de ação colaborativo pautado em 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e 169 metas, que compreendem quatro dimensões principais: social, ambiental, econômica e institucional.

Quando incentivado adequadamente através de políticas públicas, o artesanato atua como fomentador do comércio sustentável, gerador de renda e movimentador do mercado local, auxiliando inúmeras comunidades locais no país. Assim, alguns Objetivos de Desenvolvimento Sustentável possuem conexão direta com o artesanato, em especial: ODS 5 – Igualdade de Gênero, ODS 8 – Trabalho decente e crescimento econômico e ODS 12 – Consumo e produção responsáveis.

A atividade artesanal mostra-se estritamente conectada aos objetivos apresentados pela Agenda 2030. Não se configura como única solução, sobretudo se analisado apenas o contexto brasileiro, mas possui uma contribuição fundamental para aprimorar a qualidade de vida dos atores envolvidos direta e indiretamente e propor uma sociedade melhor, que se atenta a temas que permeiam o percurso da vida, e pode atingir resultados surpreendentes em conjunto com outros países. 

O artesanato contribui com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)

Os dezessete Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) para um futuro mais justo.  Reprodução: Nações Unidas Brasil.

Portanto, a trajetória humana está estritamente associada à relação moldada com o local em que vive e com as trocas feitas entre comunidades. Ao contrário de outros mamíferos, o Homo sapiens conseguiu compartilhar conhecimentos para suprir suas necessidades, sempre retirando da natureza as matérias-primas para executar suas atividades, quer seja a confecção de uma peça artesanal, quer seja a fabricação da bateria de um smartphone

Entretanto, esses recursos são esgotáveis e não estão à disposição de interesses de acumulação infinita de capital. É, portanto, urgente a harmonização de objetivos econômicos, sociais e ambientais para a manutenção do planeta Terra e de todos os seres vivos que ele abriga. O estímulo ao artesanato pode configurar-se como um dos caminhos para isso.

As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e de inteira responsabilidade do autor, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Ministério da Economia e do Programa do Artesanato Brasileiro.

Referências

KRUCKEN, Lia. Design e território: valorização de identidades e produtos locais. São Paulo: Nobel, 2009. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/215640372_Design_e_territorio_valorizacao_de_identidades_e_produtos_locais.

SACHS, I. Caminhos para o desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro: Garamond, 2002.

7 thoughts on “Território, Sustentabilidade e Artesanato

  1. Vera Lúcia Dias Duarte Joly says:

    O texto nos possibilita uma reflexão objetiva sobre aspectos que atigem o artesanato. Como levar estes conhecimentos para as pessoas que estão neste segmento?
    Acredito que o Projeto do Diagnóstico provocará esta discussão e trará luz para as diferentes esferas envolvidas.

    • Ari Rodrigues says:

      Olá Vera Lúcia! Agradecemos a leitura.

      Com certeza! O objetivo do projeto é atingir o maior número de atores do artesanato e ampliar os conhecimentos a respeitos de temas pertinentes ao setor, como o que envolve as relações de produção e consumo, e os territórios onde estão inseridas.

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